Amores líquidos I - O consumo do outro na era da internet.
- Thassio Queiroz
- 8 de set. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2023

É indiscutível que a contemporaneidade tem sido palco de profundas transformações nas experiências sexuais e amorosas. Dentre elas, está o surgimento de novas modalidades de interação a partir da tecnologia, especificamente, da internet. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman analisou justamente essas transformações, que têm como pano de fundo a sociedade de consumo, em sua célebre obra Amor Líquido, lançada em 2003. Na época em que o livro foi lançado, existiam sites de relacionamento, mas não aplicativos. A brilhante análise de Bauman, no entanto, só se confirmou e se mostrou cada vez mais atual com o advento dos aplicativos de relacionamento. Os princípios que ele identificou naquela época ainda estão presentes, e em um grau mais acentuado.
Mas o que Bauman diz sobre as relações nos tempos da internet? De partida, esse autor aponta um profundo dilema em que os indivíduos contemporâneos se veem no âmbito amoroso: relacionar-se oscila entre o sonho e o pesadelo. Enquanto guardam uma promessa de felicidade de uma vida a dois, os relacionamentos também ameaçam com o risco de uma ruína emocional e com a perda de outras possibilidades, que podem sempre ser mais satisfatórias. Assim, o compromisso seria uma armadilha. Como solução para esse problema, o compromisso foi substituído por “conexões”, que são formas mais superficiais e efêmeras de se relacionar – e que podem ser rompidas antes de se tornarem incômodas. Bauman concluiu que as conexões se tornaram o paradigma a partir do qual todos os outros relacionamentos se configuram na contemporaneidade. Ele também tece uma relação entre as conexões e a cultura do consumo, que já vigorava em nossa sociedade antes do advento da internet:
“[...] numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.”
O cenário desenhado por Bauman é o de uma cultura que prima pela satisfação instantânea e o hedonismo, onde o prazer é buscado e o desprazer é evitado a qualquer custo. Isso gera um constante movimento de aproximar-se e afastar-se do outro, a fim de atender à ânsia por pertencimento e, ao mesmo tempo, ao impulso de liberdade, ao mesmo tempo que se tenta se proteger dos perigos de ambos anseios. Com o advento do virtual, as conexões se tornaram mais frequentes e mais banais, além de mais intensas e mais breves. A preponderância adquirida pelas relações virtuais é tal que elas se tornaram o novo “real”. Todavia, quanto mais se vive as relações virtuais, mais se empobrecem as relações concretas, já que menos se aprende as habilidades inerentes e necessárias a essas relações.
Bauman argumenta que a lógica da relação de consumidor com mercadorias foi incorporada às relações afetivas e sexuais, e os indivíduos passaram a se relacionar com os outros da mesma forma com que se relacionam com as mercadorias. A isso se somam as novidades introduzidas pela internet, de uma oferta massiva e facilmente acessível de potenciais parcerias, além da facilidade de conexão e desconexão instantâneas. Esse teria se tornado o modelo preponderante de se relacionar com o outro na atualidade. Nas palavras do autor:
“Em sua versão à venda, os vínculos se transformaram em mercadorias, ou seja, são transportados para um outro domínio, governado pelo mercado, e deixam de ser os tipos de vínculo capazes de satisfazer a necessidade de convívio e que só nesta podem ser concebidos e mantidos vivos.” Posteriormente, Bauman acrescenta: “O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julga-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu ‘valor monetário’.”
Podemos concluir que, se é verdade que a internet facilitou os encontros entre pessoas, também é inegável que os vínculos têm se tornado mais efêmeros e superficiais. Em outras palavras, a internet, em uma sociedade de consumidores, facilitou tanto as conexões quanto as desconexões. Não tardou para que essa facilitação revelasse uma consequência emocional desagradável. Isso porque essa lógica de relacionamento traz consigo uma implicação problemática: se as pessoas se tornam mercadorias para serem consumidas por quem está em busca de parcerias amorosas ou sexuais, o consumidor é, consequentemente, também um produto.
(Leia a segunda parte do artigo aqui.)