Amores líquidos II - Descartabilidade e "ghosting".
- Thassio Queiroz
- 8 de set. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2023

Dois tópicos dentro da temática dos “amores líquidos” merecem destaque devido aos impactos psíquicos e emocionais que provocam, os quais são queixas recorrentes na clínica. O primeiro deles é a descartabilidade das relações – e, consequentemente, das pessoas. O segundo é uma prática que tem se tornado cada vez mais comum e naturalizada, que ficou conhecida como “ghosting”. Este termo vem da palavra inglesa ghost (fantasma), e se refere ao ato de simplesmente “sumir” da vida de uma outra pessoa com quem se mantinha algum tipo de contato. Geralmente, o sumiço consiste em simplesmente parar de responder às mensagens que a outra pessoa envia. Existem muitos motivos possíveis para o ghosting, como o esquecimento, ou o fato de simplesmente não se saber mais o que dizer em uma conversa. Ele também pode ser uma manifestação da perda do interesse pela outra pessoa, onde se evita a desagradável experiência de ter que comunicar ao outro que não se quer manter contato. Porém, o ghosting está frequentemente associado à descartabilidade do outro. E, embora possa ser cômodo para quem o pratica, costuma ser doloroso para quem é o alvo dessa prática.
Como vimos no artigo anterior sobre os "amores líquidos" (se você ainda não o leu, pode lê-lo clicando aqui.), a nossa cultura favorece a transformação dos vínculos humanos (e das pessoas) em mercadorias. E, assim como com estas não há uma relação de lealdade ou ética, com as parcerias amorosas e sexuais há cada vez menos. Segundo os princípios dessa cultura, de acordo com Bauman, tais parcerias devem ser tratadas segundo as mesmas habilidades de um consumidor, sendo fundamentalmente descartáveis. Da mesma forma como as mercadorias podem ser trocadas ou descartadas (até quando funcionam bem), as parcerias seguem a mesma regra. O princípio da obsolescência também se aplica aos laços humanos. Se uma relação não traz mais a satisfação esperada, sempre é possível descarta-la e procurar outra. Sobretudo no mundo virtual, os indivíduos sabem que há sempre uma oferta ilimitada de novas parcerias esperando na prateleira. Para Bauman, o sucesso dos sites de relacionamento (o que podemos estender, atualmente, para os aplicativos) se deve, em grande parte, à facilidade de iniciar conexões; mas talvez, em maior medida, à facilidade de corta-las. Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, mas também para serem rompidos.
Dentro dessa lógica, as frustrações com as decepções amorosas, rejeições e ghosting podem ser remediadas com novos contatos, ou com aqueles que já existiam em uma extensa lista na agenda telefônica ou whatsapp (os famosos “contatinhos”). Não é incomum que as pessoas mantenham conversas com mais de um contato ao mesmo tempo e terminem por escolher um, descartando todos os outros, nem sempre dando algum tipo de satisfação (ou seja, fazendo ghosting). A prioridade é não correr o risco de ficar sem ninguém. Nesse processo, quem é descartado leva a pior. Recebe atenção, mensagens, demonstrações de interesse, até que a outra pessoa encontre o que procurava e o deixe falando sozinho. Muitas pessoas que são alvo de ghosting relatam essa experiência como algo doloroso. Alguns procuram incessantemente alguma justificativa que explique o sumiço repentino da outra pessoa, e podem acreditar que o problema está neles, mesmo que não seja o caso de fato. Por não encerrar formalmente o contato, o ghosting deixa aberta a possibilidade de um retorno da pessoa que desapareceu. Afinal, pode ser apenas uma demora. Mas como saber se é o caso? Eis o problema: não há como. E aí ocorre o chamado “efeito Zeigarnik”: tendemos a lembrar mais de tarefas que não foram concluídas do que aquelas que foram. Quando um contato é explicitamente encerrado, sabemos que ele acabou e que devemos seguir em frente, mesmo que seja temporariamente doloroso. Mas, se esse contato não é devidamente encerrado, ele se torna uma tarefa inacabada (como uma janela de computador aberta) e mantém nosso cérebro trabalhando em função dela.
Uma outra implicação da lógica da descartabilidade e do ghosting é que ela é uma faca de dois gumes: se é conveniente descartar o outro ou desaparecer sem dar explicações, é doloroso ser descartado. E aquele que descarta está igualmente sujeito a ser descartado em algum momento. Aderir à lógica do descarte é manter o jogo funcionando, e, nesse jogo, qualquer um pode ser a próxima vítima. Muitas pessoas, machucadas com a experiência de terem sido descartadas, “vingam-se no próximo”, reproduzindo com outros o tratamento que receberam. Cria-se, assim, uma cadeia de pessoas feridas e decepcionadas com as relações amorosas. Mas afinal, o que fazer a esse respeito? É difícil responder, pois se trata de uma tendência cultural generalizada, o que não é fácil de mudar. Mas, individualmente, cada um pode procurar formas de resistência a essa lógica, recusando-se a jogar o jogo. Aqui, vale o velho princípio de “tratar os outros como se gostaria de ser tratado”. Neste caso, implica voltar a tratar as pessoas como pessoas, não como mercadorias. Talvez isso não mude o mundo, mas pode fazer a diferença para algumas pessoas e servir como um bom exemplo que, aos poucos, pode ser replicado em uma escala cada vez maior.