Existe uma sexualidade padrão?
- Thassio Queiroz
- 17 de jul. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de jul. de 2023

A sexualidade é um componente integrante da vida de qualquer ser humano, e é muito debatida popularmente, estando presente nas mais diversas produções culturais. Ao mesmo tempo, é também objeto de diversos discursos, tanto científicos quanto morais e religiosos. Uma temática central em tais discursos sobre a sexualidade é a questão da normalidade. Se há uma norma para a sexualidade humana, também há, por consequência, desvios. Daí ser comum que muitas expressões da sexualidade sejam marginalizadas e patologizadas por fugirem à modalidade considerada padrão, que consiste na relação sexual genital heterossexual entre pessoas cisgênero. Mas haveria, de fato, uma sexualidade padrão, em relação à qual todo o resto poderia ser considerado desviante? A Psicanálise se opõe frontalmente a essa hipótese. Em primeiro lugar, para a Psicanálise, a noção de sexualidade como uma atividade estritamente genital é improcedente. Isso porque, como se observa até mesmo em indivíduos que não apresentam qualquer patologia mental, existem outras zonas erógenas no corpo humano para além dos genitais. Além disso, na teoria psicanalítica, o conceito de sexualidade é muito mais amplo do que o que é entendido comumente como “sexo”: refere-se, grosso modo, a qualquer atividade que realizamos visando à obtenção de prazer. E, como sabemos, as formas de se buscar prazer são as mais variadas possíveis. No âmbito sexual, não é diferente. A busca pelo prazer e as formas de satisfação são singulares, daí ser insustentável a ideia de um padrão universal que serviria para todos os seres humanos. Isso implica que é necessário, portanto, reconsiderar a classificação de outras expressões da sexualidade como desviantes. Afinal, se não há uma norma, como falar em desvio?
Em diversas civilizações e em diferentes momentos históricos, há registros da ocorrência de variações da sexualidade que alguns discursos contemporâneos ainda insistem em tratar como desviantes. É o caso de pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascerem (ou seja, pessoas transgênero, ou simplesmente "trans") e de identidades e práticas não-heterossexuais. A forma como cada uma dessas variações é tratada difere de uma cultura para outra. Mas o fato é que, embora algumas culturas condenem e marginalizem essas formas de ser ou de desejar, outras as integram no seu entendimento de “normalidade”, não havendo qualquer conflito entre a norma social e tais manifestações da sexualidade. Daí a constatação de que a patologização e a exclusão de certas sexualidades não é unânime nas civilizações humanas; é, antes, algo culturalmente condicionado. E, uma vez que as próprias culturas estão em constante transformação, as concepções sobre a sexualidade não são estáticas. É o que vemos ocorrer na nossa cultura, historicamente transfóbica e homofóbica. Há um debate em curso sobre uma maior inclusão das chamadas “minorias sexuais” na sociedade, garantindo-lhes dignidade, direitos, e o mesmo acesso a espaços que outros grupos sempre tiveram - ou seja, o reconhecimento pleno da sua cidadania.
A contribuição da Psicanálise neste debate, para além do que já foi dito, inclui a noção de que a pulsão (ou seja, aquilo que nos move em busca de uma satisfação) não tem um objeto previamente definido, e que este pode ser totalmente variável. Por isso, não faz sentido, para a Psicanálise, pensar em um único objeto possível de satisfação sexual. Como a clínica demonstra, a sexualidade foge, o tempo todo, da determinação, da previsibilidade e da padronização. Também é válido ressaltar que, em algumas tradições, a sexualidade está fortemente associada (e, em muitos casos, limitada) à função reprodutiva. É verdade que existe uma ligação entre essas duas funções, mas não se trata de uma relação de exclusividade. O sexo também pode ser feito sem qualquer finalidade reprodutiva. Não por acaso, existem diversos métodos contraceptivos, atestando que o sexo é buscado com outra finalidade que não a procriação.
Ao criar um modelo rígido e restritivo da sexualidade, fortemente calcado na reprodução e na moral religiosa, nossa cultura patologiza formas de sexualidade que pertencem à diversidade natural humana. Portanto, só parecem erradas porque não se encaixam em um modelo específico. Sendo assim, é ele mesmo que precisa ser questionado e problematizado: o que fundamenta a ideia de que um determinado modelo é o padrão universal da sexualidade humana, quando ela sempre se apresentou tão diversa e plural? Tal modelo, arbitrariamente definido (posto que não encontra uma fundamentação última na natureza), diz mais da dificuldade de uma cultura em lidar com as diferenças do que de desvios em si. Contemporaneamente, a compreensão dos especialistas é a de que, se uma determinada vivência sexual não causa mal a outrem, nem sofrimento a quem a manifesta, ela não precisa ser problematizada e, portanto, não requer tratamento. O que muitas vezes torna um tratamento necessário é o preconceito que essas pessoas sofrem da sociedade e dificuldades de autoaceitação. Seja qual for a expressão da sexualidade ou de gênero de cada pessoa, o mais importante é que ela tenha a possibilidade de viver a verdade do seu próprio desejo. O adoecimento, muitas vezes, advém justamente da impossibilidade de se dar vazão a esse desejo, e não da forma de desejar em si.